INTRODUÇÃO
Maria Ignez Novais Ayala e Marcos Ayala
A proposta de organizar um livro narrando a experiência em pesquisas individuais, em dupla e em grupo foi se firmando nos últimos anos, devido ao grande volume de documentos gerados em pesquisa de campo e de uma vasta experiência de leitura que nos auxilia a pensar criticamente as práticas culturais que estão intimamente associadas à vida comunitária. Abrange a reflexão sobre procedimentos metodológicos utilizados para o registro e estudo das tradições orais vivas que encontramos nos estados de São Paulo e da Paraíba e em outras localidades por onde passamos. A oralidade é entendida como forma de transmissão, mas, sobretudo, como conjunto de sistemas culturais com visões de mundo, ações, normas e valores estéticos e sociais que envolvem múltiplas temporalidades. Encontrados em comunidades urbanas e rurais, indígenas e quilombolas, esses sistemas também podem se valer de outras linguagens, como, por exemplo, a da escrita, na assim chamada literatura de cordel, com seus folhetos, poemas e canções; da xilogravura, pintura e escultura; de encenação sério-cômica, mesclada com canto e dança, contendo elementos poéticos, narrativos e épicos: contam histórias, mostram a ação de pessoas ou de personagens.
A capacidade das formas de expressão da oralidade se manterem ou ressurgirem após anos de descaso dos poderes públicos ou de desinteresse de parte da comunidade pode se relacionar com a noção de tempo, diferente na cultura escrita e nas culturas orais. A duração temporal nas culturas orais é longa, a ponto de haver cantos, rituais que se refazem aparentemente sem grandes variações, quando se comparam registros feitos em diferentes momentos, com distância de vinte, trinta anos ou mais. Também não estão fixados limites de gêneros e atividades artísticas na oralidade como ocorre na cultura escrita. Tudo pode se mover: os mesmos versos orais colhidos em determinada localidade e época, numa dada forma de expressão, podem ser encontrados em outros lugares bem distantes ou podem reaparecer em outra época e em formas de expressão distintas. Tudo se faz e refaz como nas imagens sempre renovadas em um caleidoscópio. Não se trata de persistência do passado no presente, mas de criações simbólicas que têm se mantido sempre presentes, sempre atuais. O que teve significado intenso para antepassados pode continuar a ser praticado no presente por outros.
Estas características das culturas orais ficam bem evidentes quando se confrontam transcrições de registros cantados ou declamados e registros sonoros de rituais mágicos e religiosos e de danças dramáticas tradicionais.
Os artigos reportam-se a situações presenciadas em diferentes tempos e lugares, deixando transparecer o envolvimento dos pesquisadores com as pessoas detentoras de conhecimentos tradicionais, a atenção no que se viu e se ouviu, as sensações provocadas pelas poéticas orais, com efeitos de longa duração na memória dos pesquisadores envolvidos, a análise dos contextos de produção, de conflitos e estratégias das comunidades envolvidas com as práticas culturais e costumes tradicionais.
As pesquisas de culturas orais aqui tratadas são de diferente natureza:
- a) primeiros contatos com artistas populares e suas produções culturais; com senhores e senhoras respeitados em suas comunidades por conhecimentos e práticas devocionais de catolicismo popular e de religiosidade afro-brasileira, em festas locais, regionais e nacionais; com artesãos e seus trabalhos artesanais em feiras, exposições e residências;
- b) pesquisas exploratórias para conhecer os lugares de cultura e as pessoas diretamente envolvidas nos costumes e práticas artísticas e culturais;
- c) pesquisas de campo para conhecimento e registros eventuais;
- d) pesquisas de longa duração envolvendo sucessivas idas a campo, gravações de diferentes formas de atuação de artistas populares em contextos comunitários, em apresentações públicas, em situações dialógicas (conversas, relatos, entrevistas) de pesquisadores com participantes das culturas populares. Algumas delas se desenvolveram como pesquisas acadêmicas.
Nos quatro tipos acima, além das diferentes situações dialógicas (rápidas conversas em intervalos de apresentações públicas, conversas mais longas agendadas previamente) eram feitas anotações em cadernetas de campo, reflexões em cadernos com descrições e narrações detalhadas de ocorrências observadas e estudos de compreensão dos registros orais. Recorremos a transcrições, textualizando os registros orais – fixação por escrito da fala, canto e narrativas –, além de edições em outras linguagens como registros sonoros e audiovisuais, dando destaque a trechos de relatos, a versos cantados ou declamados, a narrativas. A leitura de publicações teóricas e de estudos monográficos, com especial atenção a procedimentos metodológicos e técnicos, é feita simultaneamente à organização dos dados de campo para ampliar a capacidade crítica e analítica com o conhecimento das experiências sobre culturas orais e populares, vida comunitária, diferenças de sistemas culturais, memória, temporalidade expressas por estudiosos de diferentes áreas (Letras e Linguística, Antropologia, Sociologia, Música, História, Filosofia, Psicologia, Artes Plásticas e Visuais).
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